12 Mai 2023
A cada três meses, morre uma língua no mundo e, dentro de cem anos, metade das que existem hoje estará extinta. Uma perda colossal que, na verdade, não é uma perda. As línguas não desaparecem por si mesmas, nem se extinguem por acaso. A sua aniquilação tem consequências irreversíveis e eminentemente políticas. Esses dados preocupantes pertencem ao Catálogo de Línguas Ameaçadas, da Universidade do Havaí e da UNESCO, e foram reunidos em ÄÄ: manifiestos sobre la diversidad lingüística (Almadía), publicado pela linguista, escritora e tradutora mexicana Yásnaya E. Aguilar.
A reportagem é de Laura García Higueras, publicada por El Diario, 10-05-2023. A tradução é do Cepat.
O volume é uma coletânea de textos com os quais a pesquisadora também expõe as causas dessa perda, bem como as possibilidades e a urgência de revertê-la. Com eles, também denuncia a violência estrutural que os governos centrais têm exercido sobre os falantes de línguas originárias – que podem ir da língua mixe e zapoteca, do México, à basca e catalã –, por meio de políticas que as desvalorizam em favor de uma única língua: a espanhola.
“Nunca na história houve uma morte de línguas tão colossal”, adverte a autora. Aguilar explica que há quem considere que a aceleração desse processo tem a ver com a globalização. “Há línguas mais funcionais e outras menos úteis, que são aquelas que as pessoas costumam abrir mão. Mas, há muitas evidências de que isso é falso. Consideremos a existência de línguas veiculares, que seriam utilizadas em um contexto onde várias fossem faladas. Foi assim com o latim por muito tempo e isso não fez com que o resto morresse”, destaca, lembrando que várias podem coexistir no cérebro sem problema.
A tradutora comenta que, atendendo a essa postura, o dinamarquês deveria estar em processo de desaparecimento porque “tem quatro vezes menos falantes do que uma língua indígena como o iorubá”. “Por que não foi eliminada em favor do inglês? Porque tem um Estado por trás. Há 200 anos, o mundo se dividiu em Estados-nação, que são sistemas sociopolíticos obcecados em que cada país fale uma língua, a oficial. E não só se apoiou uma língua, como também se combateu ativamente qualquer outra. Aconteceu na França, na Noruega e no México”, considera. “Não é que as línguas estejam morrendo, mas, sim, que o modelo de Estado-nação, há muito tempo, vem matando-as com dinheiro público e projetos oficiais”.
Aguilar dá como exemplo práticas realizadas em seu país, como “instruções claras aos professores para apagar as línguas com o exercício da violência contra a população infantil”.
A linguista considera que essa invisibilização foi sistemática. “Desde criança, sabia que existia a Espanha, mas não que outras línguas fossem faladas. Quando soube que na França se falava mais de dez e que nos Estados Unidos existem mais de 140 línguas indígenas, fiquei chocada. Onde quer que você vá, o normal é que haja diversidade linguística, mas sempre pensamos que só se fala uma ou duas línguas”, comenta.
Agora, quem ganha com isso? A autora afirma que existe um componente intrínseco de almejar “simplificar os processos de controle administrativo, em vez de se aceitar que existem muitas culturas, formas de fazer justiça e de gerir a educação. O fato de haver apenas uma língua é mais funcional para a exploração capitalista”. Outro problema tem a ver com o racismo, já que “a categoria indígena em si está racializada”.
Um dos textos incorporados ao livro é uma carta fictícia aos Reis Magos escrita pelas línguas indígenas, na qual destacam que há mais de 500 anos se comportam muito bem, “apesar das circunstâncias”. Entre seus pedidos, está que suas majestades tragam paz para que possam conviver à vontade com o espanhol: “Essa língua que nos cai bem, mas que suspeitamos que nos é forçada”. Na nota, pedem para ir à escola: “Podemos levar nossa mochila cheia de curiosidades sonoras. Não gostamos que as crianças tenham que nos esconder na sala de aula, sendo que muitas ainda são punidas quando convivem conosco em suas aulas”.
Também pedem livros e impressoras, um computador com acesso à internet para estar presentes na rede e o dom da ubiquidade. “Queremos estar em todos os lugares, nos hospitais, nos tribunais, nas praças, na TV e no rádio”, acrescentam. Como clímax, explicam que, em última análise, desejam “todos os privilégios que possuem línguas como o alemão, o inglês e o japonês”. “Somos todos línguas, todos temos os mesmos direitos”, concluem.
Aguilar defende que “uma sociedade justa precisa, necessariamente, do multilinguismo. O outro é um modelo absolutista, controlador e fascista”. Ao mesmo tempo, lamenta que em momento algum sejam contempladas as vantagens em nível cognitivo, cultural e de compreensão social de se falar várias línguas: “É uma pena que havendo uma sociedade com textos multilingues, tenha sido criada uma que agora é majoritariamente monolíngue”. Uma conjuntura em que, no caso do México, vê-se minada pela forma como o ensino do inglês é “um fracasso da educação pública. Para poder falar bem inglês, você tem que pagar. Isso implica que há um bloqueio classista de acesso ao bilinguismo”.
Para além das línguas, Aguilar explica que o que mais a preocupa são os seus falantes, pois considera que a perda delas é “sintoma de uma violência sustentada há muito tempo”. “Imagine a dimensão do racismo e discriminação que uma mãe enfrenta para acabar decidindo não transmitir ao filho a língua em que se sente mais à vontade, para evitar a violência que ela sofreu. É uma estratégia de sobrevivência”, alerta.
“Estou interessada em que as línguas não se percam, pois isso significaria não violentar os direitos humanos e linguísticos dessas populações. Sem direitos lingüísticos, não há direitos humanos”, afirma enfaticamente. “Perder uma língua não afeta apenas a população que a fala, é uma perda de toda a humanidade e da possibilidade de construir sociedades mais justas”. De fato, a linguista critica o fato de que no México existam pessoas que não podem desfrutar do direito a um julgamento justo, sem ter um intérprete: “Há muitas pessoas na prisão que não sei se ficaram sabendo como foi o seu julgamento”, uma circunstância que afeta outras áreas, como a saúde e a educação.
Em outros textos do livro ÄÄ: manifiestos sobre la diversidad lingüística, Yásnaya refuta o argumento de que o problema enfrentado pelas línguas está em não ser defendidas “com orgulho”. Uma mensagem que foi transmitida em uma campanha do Instituto Nacional de Línguas Indígenas do México, em 2014. “O orgulho pode estreitar laços com a dignidade, mas também com a soberba ou, no pior dos casos, é usado como um remendo emocional que cobre uma ferida ampla e profunda. Um preenchimento que tenta compensar uma carência”, escreve Yásnaya.
Aprofundando o assunto, a escritora insiste em demonstrar a mensagem que vem sendo transmitida: “Quando se perde uma língua, é porque não se sente orgulho dela”. Tudo isto, enquanto, “do outro lado”, foram feitas “muitas coisas para que você parasse de falá-la: apanhar na escola, sofrer insulto no metrô ou outras coisas que acontecem cotidianamente”. “Quando em minha infância estava em minha comunidade e ninguém me impedia de falar minha língua, nem a associava a algo negativo, não sentia orgulho em falá-la, mas alegria”, diz. “O orgulho não é a resposta. A resposta é o deleite cotidiano, tão cotidiano que é imperceptível, tão imperceptível que o orgulho não tem lugar”, pondera.
Quanto à necessidade de rotular a literatura como indígena para que haja reconhecimento e até validação, Yásnaya reconhece que, há algum tempo, “luta” com a referida categoria. Contudo, chegou a uma conclusão: “Por mais que eu não me reconhecesse nela, não significava que as violências associadas não operassem em mim. É como se eu dissesse: não gosto mais do capitalismo e o patriarcado, vou embora. Quem dera que pudesse ser uma decisão”.
Ainda assim, esclarece que indígena é uma categoria política. “Significa que somos povos colonizados e que nos processos de formação dos Estados-nação, ficamos encapsulados. Somos nações sem Estado. Há aqueles que, sim, desejam ser um Estado, como a Catalunha, e outros que não, pois pensamos que o problema é a sua criação”.
Com esse argumento sobre a mesa, a tradutora avalia que “dizer literatura indígena não faz sentido porque por trás de uma língua indígena, no México, existem onze famílias linguísticas radicalmente diferentes entre si”. Daí a luta para que os prêmios nacionais de literatura “se abram para toda a diversidade das línguas”. E, em definitivo, conseguir que elas perdurem para que possam continuar “construindo múltiplos lares para o pensamento”.
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Por que nunca houve uma morte de línguas tão colossal como agora? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU